Peras Assadas com Crème Anglaise de Canjica
e uma confeiteira brasileira vivendo o sonho de morar na França!
Eu entendo bem do que é escrever uma nova história para chamar de sua, em lugar que nem sempre foi seu.
Quando me mudei para os Estados Unidos, quase 8 anos atrás, eu nem a língua que essa terra adota, falava. Sem lenço, e com muito pouco documento, eu carregava a cara, uma quantidade absurda de coragem, e uma vontade inexplicável de fazer algum sonhos acontecerem. É fascinante o que ser imigrante pode fazer com você.
Daí eu fui me ajeitando, aprendendo, esguia me ajustando às novas realidades que a vida me jogava ali na cara. Tudo era difícil que doía (ainda é), mas também carregava naquela dificuldade uma satisfação audaciosa, descarada. Gananciosa, também. O prazer de conquistar o que é intricado parece vício.
Eu me alfabetizei de novo, em outra língua e em outra forma de viver. Aprendi novos ofícios, e neles eu era tão boa, que logo estava compartilhando com os outros, veja bem você. Assim comecei a dar aulas de escrita de comida, em Português, porque eu achei que assim tinha mais a oferecer.
Nessas aulas, encontros, cursos, que para mim pareciam dias de folga, eu tive a chance (que também chamo de sorte) de conhecer pessoas que chegaram e ficaram por aqui no meu caminhar. De alguma forma, nossas jornadas se cruzaram em momentos de se ajeitar, aprender, e esguiamente se ajustar a novas realidades. Bem nessa intercepção, conheci a Caroline.
A Caroline atenta, curiosa, interessada e inexoravelmente dedicada, prestava atenção a cada palavra que eu dizia como se fosse a última. Sabe quando você olha para alguém e imediatamente sabe onde aquela pessoa quer chegar? Eu nem precisava considerar seu trabalho e talento ESPETACULARES, que eventualmente eu viria a conhecer aos bocados, para saber da sua aptidão para a confeitaria, tanto feita quanto escrita.
Daí que quando eu estava em Paris — exatamente nessa época do ano passado — Caroline e eu que mantínhamos contato no IG, combinamos de nos encontrar pessoalmente na cidade, porque ela e o marido dirigiriam até lá para o Salon du Chocolat. Ela se mudou para a França há alguns anos, e assim como eu, também agora escreve sua história em um lugar que nem sempre foi seu.
Deus-me-livre que qualquer um de vocês tenha me encontrado em Paris naquela época, porque francamente, eu era um desastre andante: cansada, pesada, triste, solitária, atolada em trabalho atrasado, endividada, sobrevivendo a colheradas de manteiga e uma garrafa de vinho por noite. Meu dia tinha sido um sucesso quando o chefe dizia que meu prato não estava exatamente terrível. Sabe todo o clichê sobre o quão infernalmente difícil de culinária pode ser? Então. Rapadura é doce e não é mole, não.
Mas Caroline viu tudo, e ainda assim ficou. E me abraçou. Compartilhamos bons risos, fizemos planos, e oferecemos nossas mãos de cozinheira e confeiteira uma à outra, para projetos que o futuro pudesse trazer.
E o futuro chegou.
Por isso hoje, com muita, muitíssima satisfação, eu te apresento a nova contribuidora do nosso jantar: Chef Pâtissière Caroline des Roseaux. Brilhante confeiteira, escritora, amiga, e casada com o francês mais querido que já conheci!
Caroline escolheu sua receita de Peras Assadas com Crème Anglaise de Canjica para marcar sua primeira página, inspirada por uma sobremesa tradicional da Normandia.
Junte-se a mim para brindar à chegada de Caroline. Santé!
Com a palavra, a confeiteira:
Bonjour! Prazer em conhecê-lo! Sou Caroline des Roseaux, chef pâtissière, carioca apaixonada pela confeitaria e gastronomia.
Vivo meu sonho de morar na França, onde o amor pela confeitaria se entrelaça com a minha história de amor. Ao lado do meu marido francês, agora exploramos os encantos de Haute-Savoie.
Meus dias são preenchidos com a doçura das receitas que crio e a inspiração que encontro nos livros de culinária, nos vibrantes “marchés” franceses.
A art de vivre dos franceses me cativou, essa capacidade única de saborear cada momento da vida me encanta diariamente.
Convido você a mergulhar comigo nesse mundo de delícias e descobertas. Em cada receita, compartilho não apenas sabores, mas memórias e alegrias.
Aqui estou, em Collonges Sous Saleve, região de Haute-Savoie, onde os corações dos franceses dançam nas luzes dos reality shows, uma paixão que eu descobri ter sido abraçada pelo gosto francês. Junto a outros programas de culinária — na terra da alta gastronomia — os reality shows agora também se desdobram em quantidade, bem diante de nós.
Veja bem você, eu que nunca abracei com muita paciência essas realidades, vim desvendar, agora casada com uma francês de paladar refinado, o fascínio romântico dos franceses por programas culinários, e claro, a vastidão desse universo.
Assim, todas as noites de quarta-feira, abraçamos a tela do reality "Le Meilleur Patissier", que conquista a França desde 2012, cativando não apenas paladares, mas também corações, com uma audiência fervorosa. O programa é apresentado, com maestria, pelo Chef Cyril Lignac e a notável blogueira gastronômica da França, Mercotte. Me aquece assistir como, encantados, os participantes amadores são almas apaixonadas pela confeitaria.
Chamou-me a atenção a cultura francesa de convidar desde cedo as crianças à cozinha, onde auxiliam mães e avós a criar cremes, bolos e tortas, uma tradição tão vibrante entre os franceses, e algo que segue vivo em sua cultura, eventualmente se desdobrando no sucesso da sua confeitaria profissional.
Na semana que passou, o desafio do episódio era recriar um tradicional doce da Normandia, o Douillon aux Poire. Sendo confeiteira, meu coração bate por sobremesas clássicas, pelo sabor suave e pela delicadeza. Vendo eles prepararem a sobremesa, me senti inspirada a preparar as peras, mas com um sabor encharcado de brasilidade.
O Douillon de Pera, como conhecido, é tesouro culinário da Normandia. É uma história que entrelaça uma pera nua em um vestido dourado de massa, com uma tira de delicadeza que abraça cada centímetro da fruta. O coração da fruta pode ou não ser preenchido com segredos como geleia de groselha, açúcar mascavo e canela, ou um acorde de amêndoas, antes que o vestido da massa seja fechado e selado com um beijo de calor dourado, com o ovo pincelado, e, em seguida, assado, para revelar seu mistério.
O douillon é frequentemente servido ainda morno com molhos de caramelo, chocolate, baunilha, e outros contos. Em minha casa, a sobremesa é uma tradição obrigatória, mas que não julgueis que o motivo repousa em minha vocação de confeiteira... Não, oh não... Contei que meu marido é um gourmet apaixonado, e, o que é mais, é francês?
Decidi então criar essa sobremesa com notas brasileiras, um abraço da memória de minha infância, que acaricia o coração.
Trouxe da última viagem ao Brasil canjica, fubá e goiabada, embora haja uma história na alfândega de Amsterdam em relação à goiabada, que é uma narrativa para outro momento.
Há tempos acariciava o desejo de cozinhar a canjica. Desde meados do ano, quando salivava todas as vezes que espiava o Instagram e contemplava meus conterrâneos ostentando cumbucas de canjicas servidas em diferentes versões. E a nostalgia me tocou o ombro, dando um oi de saudade de quando estava grávida do meu primeiro filho, Francisco. E em pleno verão, minha mãe fazia canjica para saciar meus desejos de maternidade.
E meu anseio de criar um Crème Anglaise de Canjica para servir com as peras despertou minha imaginação.
Comecei recitar a poesia do Crème Anglaise. Deixei a canjica dançar no leite, acompanhada de canela e cravo. Quando a canjica rendeu seu esplendor, a harmonia foi transformada em pureza no liquidificador. Para o Crème Anglaise, ousadamente, reescrevi o poema original, com menos gemas e notas mais suaves de açúcar. Enquanto o creme repousava para adquirir a doçura, preparei o roteiro de Pâte Brisée e deixei descansar na geladeira. Despi as peras e retirei o coração. A Pâte Brisée, vestida finamente, tornou-se fitas de sabor, cerca de 1,5 cm de largura, e círculos de massa surgiram para servir de palco. As peras dançaram sobre os pequenos discos de massa, seus corações recheados com um toque de mel de lavanda. Em seguida, as fitas de massa enlaçaram as peras, começando pelo ápice. A água, delicadamente, com a ajuda de um pincel, uniu a elegância da massa à pera. Um toque de água, espalhado com o pincel, guiou o cristal de açúcar a seu devido lugar. E assim, as delícias foram dançar, por cerca de trinta minutos no forno.
Para o grand finale, Crème Anglaise de Canjica escorrendo generosamente!
Peras Assadas com Crème Anglaise de Canjica
Ingredientes
3 peras (usei a Willians, por serem mais duras e com leve acidez, e quando cozidas, não se desmancham facilmente)
6 colheres de chá de mel
açúcar cristal
Pate Briséé
75 gr manteiga sem sal fria
6 gr açúcar cristal
2 gr sal
125 gr farinha
1 ovo
1 colher sopa água gelada
Despeje em uma bancada a farinha, o sal e a manteiga. Com as pontas dos dedos dissolva a manteiga, fazendo o que o franceses chamam de sabler. A mistura deve ficar com a textura de uma farofinha, ou areia molhada. Bata a gema com um pouquinho de água. Abra um buraco no meio da farinha com os dedos e adicione a mistura de gema e água. Misture tudo até obter uma massa homogênea. Talvez você precise colocar mais água, vá fazendo isso aos poucos já que conforme a manteiga derrete com o calor das mãos a massa vai tomando forma.
Quando conseguir formar uma bola, vamos agora fazer a técnica de fraiser a massa, ou seja, abrir pedaço por pedaço com a palma da mão para que tudo fique mais homogêneo sem que a massa fique elástica.
Junte tudo novamente em uma bola e embrulhe em um plástico filme. Leve para a geladeira por pelo menos 30 minutos. Depois desse tempo você pode abrir a massa com um rolo, numa espessura fina. Corte a massa em tiras de 1,5 cm e 3 discos de 3 cm de diâmetro.
Crème Anglaise de Canjica
250gr canjica branca
1 l de leite
2 paus de canela e 3 unidades de cravo
Numa panela de pressão, adicione a canjica, o leite e a canela e o cravo. Cozinhe por uns 25 min, até que a canjica esteja bem macia.
Caso não tenha panela de pressão, sem problemas… não é por isso que vai desistir, nada disso. Pode cozinhar em panela comum; porém, como o cozimento será mais longo (em torno de 1h30 a 2hs), irá precisar adicionar mais líquidos no processo, pode ser água ou mesmo leite. E também, ocasionalmente, mexa a canjica com uma espátula ou colher para evitar que grude no fundo da panela.Depois de cozida, bata a canjica com o leite no liquidificador até que forme um creme liso.
2 gemas
350 gr creme de canjica
150 ml leite
80 gr açúcar cristal
Numa panela, coloque o leite e o creme de canjica. Leve ao fogo baixo até que comece a levantar fervura. Desligue o fogo.
Em uma tigela, bata as gemas com o açúcar até obter um creme clarinho. Despeje o creme de canjica aos pouquinhos dentro da mistura de gemas e açúcar. Transfira a mistura para a panela e leve ao fogo baixo. Mexa com uma espátula constantemente até atingir a temperatura de 82 graus, cuidado para não aquecer muito senão pode talhar.
Transfira para uma vasilha e cubra com plástico filme em contato com o creme. Deixe o creme esfriar antes de servir.
Preparo e montagem
Descaque as peras e retire o miolo. Corte o cabinho do miolo e reserve.
Numa assadeira coberta com papel manteiga, espalhe os círculos de massa, coloque as peras sobre eles. Recheie as peras com duas colheres de chá de mel, em cada pera.
Agora, vem a melhor parte: Pegue uma fita de massa e coloque na bancada, comece a enrolar pela extremidade, como se fizesse um minúsculo rocambole. Vai te ajudar a cobrir as peras com perfeição.
Comece a vestir a pera pelo topo, descendo em movimento leve e extremamente prazeroso até a base. A fita irá encontrar com o círculo de massa. Com as palmas das mãos, abrace a pera, para que a massa encoste nela.Com as pontas dos dedos, dê uma leve pressionada no topo da massa para fechar. Pegue o cabinho que reservou quando retirou o miolo, e enfie no topo da massa.
Com um pincel, passe um pouco de água na massa e depois cubra com açúcar cristal.
Leve ao forno pré aquecido a 180 graus por em média 20 a 25 min. Ou até que a massa esteja dourada e o açúcar brilhando como diamante.
Sirva quente ou fria, acompanhado com generosas colheradas de Crème Anglaise de Canjica.
Bon appétit!
* As lindas ilustrações que agora compõem a nossa newsletter são trabalho do meu queridíssimo Du do Comida Ilustrada. Merci, Du!